ORAÇÃO AOS MOÇOS – Parte 01
por Rui Barbosa (*)
Discurso escrito para paraninfar os formandos da turma de 1920 da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em São Paulo.
Impedido de comparecer, por problemas de saúde, o texto foi lido pelo professor Reinaldo Porchat. Uma das mais brilhantes reflexões produzidas pelo jurista sobre o papel do magistrado e a missão do advogado. O autor faz um balanço de sua vida como advogado, jornalista e político, como exemplo para as novas gerações.
∆ MEDIADOR/A:
∞ Saudações, membros da Tábula Política.
∞ Nunca antes, nossos Tribunais estiveram tão em evidência.
∞ Nunca antes na história deste país, o ITAMARATI teve tanto reconhecimento.
∞ Aspirávamos que — após um corpo de mentes internacionalmente reconhecidas — o Palácio da Diplomacia Brasileira estivesse sempre bem representado, contudo não é o que ora acontece.
∞ Com revestimento mais espúrio que se pode encontrar, eis que passaporte diplomático virou espécime mercantil, páreo duro para qualquer mercador de entorpecentes nos morros cariocas. A diferença básica é que, enquanto estes são traficantes de drogas, aqueles — pasmem! — o são de passaportes diplomáticos.
∞ Já houve época — não muito longe — que tínhamos motivos para ter orgulho do corpo diplomático brasileiro.
∞ Que falta nos faz um Rui Barbosa!... Especialmente nestes tempos sombrios, ei-lo aqui para nos ensinar uma oração contra os males da corrupção e da imoralidade.
∞ Observem!... Aprendam!... Ensinem!... Melhor conselho que este, seria impossível encontrar ou receber!
∞ Nesta primeira parte do discurso, visto com a roupagem dos dias atuais, até parece que o MESTRE mostra a convivência através da Internet... Profecias do velho e querido Rui?... Quem sabe!
∞ Vamos a ele...
◊ Senhores:
◊ Não quis Deus que os meus cinquenta anos de consagração ao direito viessem receber no templo do seu ensino em São Paulo o selo de uma grande bênção, associando-se hoje com a vossa admissão ao nosso sacerdócio, na solenidade de votos em que o ides desposar.
◊ Em verdade vos digo, jovens amigos meus, que o coincidir desta existência declinante com essas carreiras nascentes agora, o seu coincidir num ponto de interseção tão magnificamente celebrado, era mais do que eu merecia; e, negando-me a divina bondade um momento de tamanha ventura, não me negou senão o a que eu não devia ter tido a inconsciencia de aspirar.
◊ Mas, recusando-me o privilégio de um dia tão grande, ainda me consentiu o encanto de vos falar, de conversar convosco, presente entre vós em espírito; o que é, também, estar presente em verdade.
◊ Assim que não me ides ouvir de longe, como a quem se sente arredado por centenas de quilômetros, mas ao pé, de em meio a vós, como a quem está debaixo do mesmo teto, e a beira do mesmo lar, em colóquio de irmãos, ou junto dos mesmos altares, sob os mesmos campanários, elevando ao Criador as mesmas orações, e professando o mesmo credo.
◊ Direis que isto de me achar assistindo, assim, entre os de quem me vejo separado por distância tão vasta, seria dar-se, ou supor que se está dando, no meio de nós, um verdadeiro milagre?
◊ Será. Milagre do maior dos taumaturgos. Milagre de quem respira entre milagres. Milagre de um santo, que cada qual tem no sacrário do seu peito. Milagre do coração, que os sabe chover sobre a criatura humana, como o firmamento chove nos campos mais áridos e tristes a orvalhada das noites, que se esvai, com os sonhos de antemanhã, ao cair das primeiras frechas de oiro do disco solar.
◊ Embora o realismo dos adágios teime no contrário, tolerem-me o arrojo de afrontar uma vez a sabedoria dos provérbios. Eu me abalanço a lhes dizer e redizer de não. Não é certo, como corre mundo, ou, pelo menos, muitas e muitíssimas vezes, não é verdade, como se espalha fama, que “longe da vista, longe do coração”
◊ O gênio dos anexins, aí, vai longe de andar certo. Esse prolóquio tem mais malícia que ciência, mais epigrama que justiça, mais engenho que filosofia. Vezes sem conto, quando se está mais fora da vista dos olhos, então (e por isso mesmo) é que mais a vista do coração estamos; não só bem a sua vista, senão vem dentro nele.
◊ Não, filhos meus (deixai-me experimentar, uma vez que seja, convosco, este siavíssimo nome); não: o coração não é tão frívolo, tão exterior, tão carnal, quanto se cuida. Há, nele, mais que um assombro fisiológico: um prodígio moral. E o órgão da fé, o órgão da esperança, o órgão do ideal. Vê, por isso, com os olhos d’alma, o que não vêem os do corpo. Vê ao longe, vê em ausência, vê no invisível, e até o infinito vê. Onde pára o cérebro de ver, outorgou-se o Senhor que ainda veja; e não se sabe até onde. Até onde chegam as vibrações do sentimento, até onde se perdem os durtos da poesia, até onde se somem os vôos da crença: até Deus mesmo, inviso como os panoramas íntimos do coração, mas presente ao céu e a terra, a todos nós presentes, enquanto nos palpite, incorrupto, no seio, o músculo da vida e da nobreza e da bondade humana.
◊ Quando ele já não estende o raio visual pelo horizonte do invisível, quando sua visão tem por limite a do nervo ótico, é que o coração, já esclerótico, ou degenerescente, e saturado nos resíduos de uma vida gasta no mal, apenas oscila mecanicamente no interior do arcaboiço, como pêndula de relógio abandonado, que agora, com as derradeiras pancadas, os vermes e a poeira da caixa. Dele se retirou a centelha divina. Até ontem lhe banhava ela de luz todo esse espaço, que nos distancia do incomensurável desconhecido, e lançava entre este e nós uma ponte de astros. Agora, apagados esses luzeiros, que o inundavam de radiosa claridade, lá se foram, com o extinto cintilar das estrelas, as entreabertas do dia eterno, deixando-nos, tão-somente, entre o longínquo mistério daquele termo e o aniquilamento da nossa miséria desamparada, as trevas de outro éter, como esse que se diz encher de escuridão o vago mistério do espaço.
◊ Entre vós, porém, moços, que me estais escutando, ainda brilha em toda a sua rutilância o clarão da lâmpada sagrada, ainda arde em toda a sua energia o centro de calor, a que se aquece a essência d’alma. Vosso coração, pois, ainda estará incontaminado; e Deus assim o preserve.
◊ Metei a mão no seio, e aí o sentireis com a sua segunda vista. Desta, sobretudo, é que ele nutre sua vida agitada e criadora. Pois não sabemos que, com os antepassados, vive ele da memória, do luto e da saudade? E tudo é viver no pretérito. Não sentimos como, com os nossos conviventes, se alimenta ele na comunhão dos sentimentos e índoles, das idéias e aspirações? E tudo é viver num mundo, em que estamos sempre fora deste, pelo amor, pela abnegação, pelo sacrifício, pela caridade. Não nos será claro que, com os nossos descendentes e sobreviventes, com os nossos sucessores e pósteros, vive ele de fé, esperança e sonho? Ora, tudo é viver, previvendo, é existir, preexistindo, é ver, prevendo. E, assim, está o coração, cada ano, cada dia, cada hora, sempre alimentado em contemplar o que não vê, por ter em dote dos céus a preexcelência de ver, ouvir e palpar o que os olhos não divisam, os ouvidos não escutam, e o tato não sente.
◊ Para o coração, pois, não há passado, nem futuro, nem ausência. Ausência, pretérito e porvir, tudo lhe é atualidade, tudo presença. Mas presença animada e vivente, palpitante e criadora, neste regaço interior, onde os mortos renascem, prenascem os vindoiros, e os distanciados se ajuntam, ao influxo de um talismã, pelo qual, nesse mágico microcosmo de maravilhas, encerrado na breve arca de um peito humano, cabe, em evocações de cada instante, a humanidade toda e a mesma eternidade.
◊ A maior de quantas distâncias logre a imaginação conceber, é a da morte; e nem esta separa entre si os que a terrível apartadora de homens arrebatou aos braços uns dos outros. Quantas vezes não entrevemos, nesse fundo obscuro e remotíssimo, uma imagem cara? Quantas vezes não a vemos assomar nos longes da saudade, sorridente, ou melancólica, alvorolada, ou inquieta, severa ou carinhosa, trazendo-nos o bálsamo, ou o conselho, a promessa, ou o desengano, a recompensa, ou o castigo, o aviso da fatalidade, ou os presságios de bom agoiro? Quantas nos não vem conversar, afável e tranquila, ou pressurosa e sobressaltada, com o afago nas mãos, a doçura na boca, a meiguice no semblante, o pensamento na fonte, límpida, ou carregada, e lhe saímos do contato, ora seguros e robustecidos, ora transidos de cuidado e pesadume, ora cheios de novas inspirações, e cismando, para a vida, novos rumos? Quantas outras, não somos nós os que vamos chamar esses leais companheiros de além-mundo, e com eles renovar a prática interrompida, ou instar com eles por um alvitre, em vão buscando, uma plavra, um movimento do rosto, um gesto, uma réstia de luz, um traço do que por lá se sabe, e aqui se ignora?
◊ Se não há, pois, abismo entre duas épocas, nem mesmo a voragem final desta a outra vida, que não transponha a mútua atração de duas almas, não pode haver, na mesquinha superfície do globo terrestre, espaços, que não vença, com os instantâneos de presteza das vibrações luminosas, esse fluido incomparável, por onde se realiza, na esfera das comunicações morais, a maravilha da fotografia a distância no mundo positivo da indústria moderna.
◊ Tampouco medeia do Rio a São Paulo! Por que não conseguiremos enxergar de um a outro cabo, em linha tão curta? Tentemos. Vejamos. Estendamos as mãos, entre os dois pontos que a limitam. Deste aquele já se estabeleceu a corrente. Rápida, como o pensamento, corre a emanação magnética desta extremidade a oposta. Já num aperto se confundiram as mãos, que se procuravam. Já, num amplexo de todos, nos abraçamos uns aos outros. Em São Paulo estamos. Conversemos, amigos, de presença em presença.
[Tecle] Parte 02>>>>>>>>>>>>>
(*) Rui Barbosa de Oliveira, nasceu em Salvador — em 5 de novembro de 1849 — e morreu em Petrópolis — 1º de março de 1923. Foi jurista, político, diplomata, escritor, filólogo, tradutor e orador brasileiro.
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