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sábado, 15 de janeiro de 2011

Oração aos Moços - Parte 03

ORAÇÃO AOS MOÇOS – Parte 03
[continuação]




por Rui Barbosa (*)



∆ MEDIADOR/A:
∞ Saudações, membros da Tábula Política.
∞ E vem a grande aula de civismo... de hombridade, idoneidade e caráter do Grande Águia de Haia.
∞ Eis um grande argumento contra a BOLSA que o petismo adora esmolar aos miseráveis do povo brasileiro. Arquivam tanto e não estudam.
∞ Avante na aula!



◊ Estou-vos abrindo o livro da minha vida. Se me não quiserdes aceitar como expressão fiel da realidade esta versão rigorosa de uma das suas páginas, com que mais me consolo, recebei-a, ao menos, como ato de fé, ou como conselho de pai a filhos, quando não como o testamento de uma carreira, que poderá ter discrepado, muitas vezes, do bem, mas sempre o evangelizou com entusiasmo, o procurou com fervor, e o adorou com sinceridade.
◊ Desde que o tempo começou, lento lento, a me decantar o espírito do sedimento das paixões, com que o verdor dos anos e o amargor das lutas o enturbarvam, entrando eu a considerar com filosofia nas leis da natureza humana, fui sentindo quanto esta necessita da contradição, como a lima dos sofrimentos a melhora, a que ponto o acerbo das provações a expurga, a tempera, a nobilita, a regenera. Então vim a perceber vivamente que a imensa dívida cada criatura da nossa espécie deve aos seus inimigos e desfortunas. Por mais desafrestes que sejam os contratempos da sorte e as maldades dos homens, rato nos causam mal tamanho, que nos não façam ainda maior bem. Ai de nós, se esta purificação gradual, que nos deparam as vicissitudes cruéis da existência, não encontrasse a colaboração providencial da fortuna adversa e dos nossos desafetos. Ninguém mete em conta o serviço contínuo, de que lhes está em obrigação.
◊ Diríeis, até que, mandando-nos amar aos nossos inimigos, em boa parte nos quis o divino legislador entremostrar o muito, de que eles nos são credores. A caridade com os que nos malquerem, e os que nos malfazem, não é, em bem larga escala, senão pago dos benefícios, que, mal a seu grado, mas muito deveras, eles nos granjeiam.
◊ Destarte, não equivocaremos a aparência com a realidade, se, nos dissabores que malquerentes e malfazentes nos propinam, discernirmos a quota de lucro, com que eles, não levando em tal o sentido, quase sempre nos favorecem. Quanto é pela minha parte, o melhor do que sou, bem assim o melhor do que me acontece, frequentemente acaba o tempo convencendo-me de que não me vem das doçuras da fortuna propícia, ou da verdadeira amizade, senão sim que o devo, principalmente, às maquinações dos malévolos e as contradições da sorte madrasta. Que seria, hoje, de mim, se o veto dos meus adversários, sistemático e pertinaz, me não houvesse poupado aos tremendos riscos dessas alturas, “alturas de Satanás”, como as de que fala o Apocalipse, em que tantos se têm perdido, mas a que tantas vezes me tem tentado exalçar o voto dos meus amigos? Amigos e inimigos estão, amiúde, em posições trocadas, Uns nos querem mal, e fazem-nos bem. Outros nos almejam o bem, e nos trazem o mal.
◊ Não poucas vezes, pois, razão é lastimar o zelo dos amigos, e agradecer a malevolência dos opositores. Estes nos salvam, quando aqueles nos extraviam. De sorte que, no perdoar aos inimigos, muita vez não vai semente caridade cristã, senão também justiça ordinária e reconhecimento humano. E, ainda quando, aos olhos de mundo, como aos do nosso juízo descaminhado, tenham logrado a nossa desgraça, bem pode ser que, aos olhos da filosofia, aos da crença e aos da verdade suprema, não nos hajam contribuído senão para a felicidade.
◊ Estes, senhores, será um saber vulgar, um saber rasteiro, “um saber só de experiência feito”.
◊ Não é o saber da ciência, que se libra acima das nuvens, e alteia o vôo sobervo, além das regiões siderais, até aos páramos indevassáveis do infinito. Mas, ainda assim, este saber fácil mereceu a Camões o ter a sua legenda insculpida em versos imortais; quanto mais a nós outros, bichos da terra tão pequenos, a ninharia de ocupar divagações, como estas, de um dia, folhas de árvore morta, que, talvez, não vinguem ao de amanhã.
◊ Da ciência estamos aqui numa catedral. Não cabia em um velho catecúmeno vir ensinar a religião aos seus bispos e pontífices, nem aos que agora nela recebem as ordens do seu sacerdócio. E hoje é féria, ensejo para tréguas ao trabalho ordinário, quase dia santo. Labutastes a semana toda, o vosso curso de cinco anos, com teorias, hipóteses e sistemas, com princípios, teses e demonstrações, com leis, códigos e jurisprudências, com expositores, intperpretes e escolas. Chegou o momento de vos assentardes, mão por mão, com os vossos sentimentos, de vos pordes a fala com a vossa consciência, de praticardes familiarmente, com os vossos afetos, esperanças e propósitos.
◊ Eis ao que vem o padrinho, o velho, o abendiçoador, carregado de anos e tradições, versado nas longas lições do tempo, mestre de humildade, arrependimento e desconfiança, nulo entre os grandes da inteligência, grande entre os experimentados na fraqueza humana. Que se feche, pois, alguns momentos, o livro da ciência; e folheemos juntos o da experiência. Desaliviemo-nos do saber humano, carga formidável, e voltemo-nos uma hora para este outro, leve, comezinho, desalinhado, conversável, seguro, sem altitudes, sem despenhadeiros.
◊ Ninguém, senhores meus, que empreenda uma jornada extraordinária, primeiro que meta o pé na estrada, se esquecerá de entrar em conta com as suas forças, por saber se a levarão ao cabo. Mas, na grande viagem, na viagem de trânsito deste a outro mundo, não há possa, ou não possa, não há querer, ou não querer. A vida não tem mais que duas portas: uma de entrar, pelo nascimento; outra de sair, pela morte. Ninguém, cabendo-lhe a vez, se poderá firtar a entrada. Ninguém, desde que entrou, em lhe chegando o turno, se conseguirá evadir a saída. E, de um ao outro extremo, vai o caminho, longo, ou breve, ninguém o sabe, entre cujos termos fatais se sebate o homem, pesaroso de que entrasse, receoso da hora em que saia, cativo de um e outro mistério, que lhe confinam a passagem terrestre.
◊ Não há nada mais trágico do que a fatalidade inexorável deste destino, cuja rapidez ainda lhe agrava a severidade.
◊ Em tão breve trajeto cada um há de acabar a sua tarefa. Com que elementos? Com os que herdou, e os que cria. Aqueles são a parte da natureza. Estes, a do trabalho.
◊ A parte da natureza varia ao infinito. Não há, no universo, duas coisas iguais. Muitas se parecem umas as outras. Mas todas entre si diversificam. Os ramos de uma só árvore, as folhas da mesma planta, os traços da polpa de um dedo humano, as gotas do mesmo fluido, os argueiros do mesmo pó, as raias do espectro de um só raio solar ou estelar. Tudo assim, desde os astros, no céu, até os micróbios no sangue, desde as nebulosas no espaço, até aos aljôfares do rocio na relva dos prados.
◊ A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade. O mais são desvarios da inveja, do orgulho, ou da loucura. Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real. Os apetites humanos conceberam inverter a norma universal da criação, pretendendo, não dar a cada um, na razão do que vale, mas atribuir o mesmo a todos, como se todos se equivalessem.
◊ Esta blasfêmia contra a razão e a fé, contra a civilização e a humanidade, é a filosofia da miséria, proclamada em nome dos direitos do trabalho; e, executada, não faria senão inaugurar, em vez da supremacia do trabalho, a organização da miséria.
◊ Mas, se a sociedade não pode igualar os que a natureza criou desiguais, cada um, nos limites da sua energia moral, pode reagir sobre as desigualdades nativas, pela educação, atividade e perseverança. Tal a missão do trabalho.
◊ Os portentos de que esta força é capaz, ninguém os calcula. Suas vitórias na reconstituição da criatura mal dotada só se comparam as da oração.
◊ Oração e trabalho são os recursos mais poderosos na criação moral do homem. A oração é o íntimo sublimar-se d'alma pelo contato com Deus. O trabalho é o inteirar, o desenvolver, o apurar das energias do corpo e do espírito, mediante a ação contínua de cada um sobre si mesmo e sobre o mundo onde labutamos.
◊ O indivíduo que trabalha acerca-se continuamente do autor de todas as coisas, tomando na sua obra uma parte, de que depende também a dele. O Criador começa, e a criatura acaba a criação de si própria.
◊ Quem quer, pois, que trabalhe, está em oração ao Senhor. Oração pelos atos, ela emparelha com a oração pelo culto. Nem pode ser que uma ande verdadeiramente sem a outra. Não é trabalho digno de tal nome o do mau; porque a malícia do trabalhador o contamina. Não é oração aceitável a do ocioso; porque a ociosidade a dessagra. Mas, quando o trabalho se junta à oração, e a oração com o trabalho, a segunda criação do homem, a criação do homem pelo homem, semelha as vezes, em maravilhas, a criação do homem pelo divino Criador.
◊ Ninguém desanime, pois, de que o berço lhe não fosse generoso, ninguém se creia malfadado, por lhe minguarem de nascença haveres e qualidades. Em tudo isso não há surpresas, que se não possam esperar da tenacidade e santidade no trabalho. Quem não conhece a história do padre Suárez, o autor do tratado "Das Leis e de Deus Legislador" (De Legibus ac Deo Legislatore), monumento jurídico, a que os trezentos anos de sua idade ainda não gastaram o conceito de honra das letras castelhanas? De cinquenta aspirantes, que, em 1564, solicitavam, em Salamanca, ingresso a Companhia de Jesus, esse foi o único rejeitado, por curto de entendimento e revesso ao ensino. Admitido, todavia, a insistências suas, com a nota de indiferente, embora primasse entre os mais aplicados, tudo lhe eram, no estudo, espessas trevas. Não avançava um passo, Afinal, por consenso de todos, passava por invencível a sua incapacidade. Confessou-a, por fim, ele mesmo, requerendo ao reitor, o célebre padre Martin Gutierrez, que o escusasse da vida escolar, e o entregasse aos misteres corporais de irmão coadjutor. Gutierrez animou-o a orar, persistir, e esperar. De repente se lhe alagou de claridade a inteligência. Mergulhou-se, então, cada vez mais no estudo; e daí, com estupenda mudança, começa a deixar ver o a que era destinada aquela extraordinária cabeça, até esse tempo submersa em densa escuridade.
◊ Já é mestre insigne, já encarna todo o saber da renascença teológica, em que brilham as letras de Espanha. Sucessivamente ilustra as cadeiras de filosofia, teologia e cânones nas mais famosas universidades européias: em Segóvia, em Valhadolid, em Roma, em Alcalã, em Salamanca, em Ávila, em Coimbra. Nos seus setenta anos de vida, professa as ciências teológicas durante quarenta e sete, escreve cerca de duzentos volumes, e morre comparado com Santo Agostinho e São Tomás, abaixo de quem houve quem o considerasse "o maior engenho, que tem tido a igreja"; sendo tal a sua nomeada, ainda entre os protestantes, que deste jesuíta, como teólogo e filósofo, chegou a dizer Grocio que "apenas havia quem o igualasse".






(*) Rui Barbosa de Oliveira,  nasceu em Salvador — em 5 de novembro de 1849 — e morreu em Petrópolis — 1º de março de 1923. Foi jurista, político, diplomata, escritor, filólogo, tradutor e orador brasileiro.

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