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sábado, 15 de janeiro de 2011

Oração aos Moços - Parte 04

ORAÇÃO AOS MOÇOS – Parte 04
[continuação]


por Rui Barbosa (*)






∆ MEDIADOR/A:
∞ Saudações, membros da Tábula Política.
∞ Eis que o Mestre nos brinda com uma ODE AO ESTUDO!... Ação não muito executada nos diversos níveis da Administração Pública, seja ela em âmbito Federal, Estadual ou Municipal, e a cada dia menos visto naqueles que são pagos para SERVIR ao povo, seja por concurso público ou indicação partidária.
∞ Quando não se pode usufruir dos ensinamentos úteis em quem vivo se encontra, uma chegada a biblioteca sempre reserva boas lições nos tempos idos, onde HONRA e ÉTICA ainda eram fartamente encontradas em todos os rincões da sociedade brasileira — do Oiapoque ao Chuí... Onde as palavras discursadas eram — tão-somente — depoimentos reais das ações realizadas pelos Autores dos mesmos!
∞ Aos sedentos de conhecimento — científico ou moral —, embevecei-vos!...



Já vedes que ao trabalho nada é impossível. Dele não há extremos, que não sejam de esperar. Com ele nada pode haver, de que desesperar.
◊ Mas, do século XVI ao século XX, o que as ciências cresceram, é incomensurável. Entre o currículo da teologia e filosofia no primeiro, e o programa de um curso jurídico, no segundo, a distância é infinita. Sobre os mestres, os sábios e os estudantes de agora pesam montanhas e montanhas mais de questões, problemas e estudos que quantos, há três ou quatro séculos, se abrangiam no saber humano.
◊ O trabalho, pois, vos há de bater à porta dia e noite; e nunca vos negueis às suas visitas, se quereis honrar vossa vocação, e estais dispostos a cavar nos veios de vossa natureza, até dardes com os tesouros, que aí vos haja reservado, com ânimo benigno, a dadivosa Providência. Ouvistes o aldrabar da mão oculta, que vos chama ao estudo? Abri, abri, sem detença. Nem por vir muito cedo, lho leveis a mal, lho tenhais à conta de importuna. Quanto mais matutinas essas interrupções do vosso dormir, mais lhas deveis agradecer.
◊ O amanhecer do trabalho há de antecipar-se ao amanhecer do dia. Não vos fieis muito de quem esperta já sol nascente, ou sol nado. Curtos se fizeram os dias, para que nós os dobrássemos, madrugando. Experimentai, e vereis quanto vai do deitar tarde ao acordar cedo. Sobre a noite o cérebro pende ao sono. Antemanhã, tende a despertar.
◊ Não invertais a economia do nosso organismo: não troqueis a noite pelo dia, dedicando este a cama, e aquela as distrações. O que se esperdiça para o trabalho com as noitadas inúteis, não se lhe recobra com as manhãs de extemporâneo dormir, ou as tardes de cansado labutar. A ciência, zelosa do escasso tempo que nos deixa a vida, não dá lugar aos tresnoites libertinos. Nem a cabeça já exausta, ou estafada nos prazeres, tem onde caiba o inquirir, o revolver, o meditar do estudo.
◊ Os próprios estudiosos desacertam, quando, iludidos por um hábito de inversão, antepõem o trabalho, que entra pela noite, ao que precede o dia. A natureza nos está mostrando com exemplos a verdade. Toda ela, nos viventes, ao anoitecer, inclina para o sono. A esta lição geral só abrem triste exceção os animais sinistros e os carniceiros. Mas, quando se avizinha o volver da luz, muito antes que ela arraie a natureza, e ainda primeiro que alvoreça no firmamento, já rompeu na terra em cânticos a alvorada, já se orquestram de harmonias e melodias campos e selvas, já o galo, não o galo triste do luar dos sertões do nosso Catulo, mas o galo festivo das madrugadas, retine ao longe a estridência dos seus clarins, vibrantes de jubilosa alegria.
◊ Ouvi, no poema de Jó, a voz do Senhor, perguntando a seu servo, onde estava, quando o louvavam as estrelas da manhã: "Ubi eras cum me laudarent simul astra matutina"? E que têm mais as estrelas da manhã, dizia um grande escritor nosso, "que têm mais as estrelas da manhã que as da tarde, ou as da noite, para fazer Deus mais caso do louvor de umas que das outras? Não é ele o Senhor do tempo, que deve ser louvado a todo o tempo, não só da luz, senão também das trevas? Assim é: porém as estrelas da manhã têm esta vantagem que madrugam, antecipam-se, e despertam aos outros, que se levantem a servir a Deus. Pois disto é que Deus se honra, e agrada em presença de Jó".
◊ Tomai exemplo, estudantes e doutores, tomai exemplo das estrelas da manhã, o gozareis das mesmas vantagens: não só a de levantardes mais cedo a Deus a oração do trabalho, mas a de antecederdes aos demais, logrando mais para vós mesmos, e estimulando os outros a que vos rivalizem no ganho bendito.
◊ Há estudar, e estudar. Há trabalhar, e trabalhar. Desde que o mundo é mundo, se vem dizendo que o homem nasce para o trabalho: "Homo nascitur ad laborem". Mas o trabalhar é como o semear, onde tudo vai muito das sazões, dos dias e das horas. O cérebro, cansado e seco do laborar diurno, não acolhe bem a semente: não a recebe fresco e de bom grado, como a terra orvalhada. Nem a colheita acode tão suave as mãos do lavrador, quando o torrão já lhe não está sorrindo entre o sereno da noite e os alvores do dia.
◊ Assim, todos sabem que para trabalhar nascemos. Mas muitos somos os que ignoramos certas condições, talvez as mais elementares, do trabalho, ou, pelo menos, mui poucos os que as praticamos. Quantos serão os que acreditem que os melhores trabalhadores sejam os melhores madrugadores? Que os mais estudiosos não sejam os que oferecem ao estudo os sobejos do dia, mas os que o honram com as primícias da manhã?
◊ Dirão que tais trivialidades, cediças e corriqueiras, não são para contempladas num discurso acadêmico, nem para escutadas entre doutores, lentes e sábios. Cada um se avém como entende, e faz o que pode. Mas eu, nisto aqui, faço ainda o que devo. Porque, vindo pregar-vos experiência, cumpria que relevasse mais a que mais sobressai na minha estirada carreira de estudante.
◊ Estudante sou. Nada mais. Mau sabedor, fraco jurista, mesquinho advogado, pouco mais sei do que saber estudar, saber como se estuda, e saber que tenho estudado. Nem isso mesmo sei se saberei bem. Mas, do que tenho logrado saber, o melhor devo às manhãs e madrugadas. Muitas lendas se têm inventado, por aí, sobre excessos da minha vida laboriosa. Deram, nos meus progressos intelectuais, larga parte ao uso em abuso do café e ao estímulo habitual dos pés mergulhados n'água fria. Contos de imaginadores. Refratário sou ao café. Nunca recorri a ele como a estimulante cerebral. Nem uma só vez na minha vida busquei num pedilúvio o espantalho do sono.
◊ Ao que devo, sim, o mais dos frutos do meu trabalho, a relativa exabundância de sua fertilidade, a parte produtiva e durável da sua safra, é as minhas madrugadas. Menino ainda, assim que entrei ao colégio, alvidrei eu mesmo a conveniência desse costume, e daí avante o observei, sem cessar, toda a vida. Eduquei nele o meu cérebro, a ponto de espertar exatamente a hora, que comigo mesmo assentava, ao dormir. Sucedia, muito amiúde, encetar eu a minha solitária banca de estudo a uma ou as duas da antemanhã. Muitas vezes me mandava meu pai volver ao leito; e eu fazia apenas que lhe obedecia, tornando, logo após, aquelas amadas lucubrações, as de que me lembro com saudade mais deleitosa e entranhável.
◊ Tenho, ainda hoje, convicção de que nessa observância persistente está o segredo feliz, não só das minhas primeiras vitórias no trabalho, mas de quantas vantagens alcancei jamais levar aos meus concorrentes, em todo o andar dos anos, até a velhice. Muito há que já não subtraio tanto as horas da cama, para acrescentar as do estudo. Mas o sistema ainda perdura, bem que largamente cerceado nas antigas imoderações. Até agora, nunca o sol deu comigo deitado, e, ainda hoje, um dos meus raros e modestos desvanecimentos é o de ser grande madrugador, madrugador impenitente.
◊ Mas, senhores, os que madrugam no ler, convém madrugarem também no pensar. Vulgar é o ler, raro o refletir. O saber não está na ciência alheia, que se absorve, mas, principalmente, nas idéias próprias, que se geram dos conhecimentos absorvidos, mediante a transmutação, por que passam, no espírito que os assimila. Um sabedor não é armário de sabedoria armazenada, mas transformador reflexivo de aquisições digeridas.
◊ Já se vê quanto vai do saber aparente ao saber real. O saber de aparência crê e ostenta saber tudo. O saber de realidade, quanto mais real, mais desconfia, assim do que vai apreendendo, como do que elabora.






(*) Rui Barbosa de Oliveira,  nasceu em Salvador — em 5 de novembro de 1849 — e morreu em Petrópolis — 1º de março de 1923. Foi jurista, político, diplomata, escritor, filólogo, tradutor e orador brasileiro.

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