ORAÇÃO AOS MOÇOS – Parte 02
[continuação]
por Rui Barbosa (*)
∆ MEDIADOR/A:
∞ Saudações, membros da Tábula Política.
∞ Mais uma vez, perfeito. Quisera que dita ira divina fosse vista em defesa do povo no Salão Rui Barbosa, do Senado Federal, no Congresso Nacional, em Brasília.
∞ Melancólico... Iroso... Malacafento!
∞ Ah! Mestre Rui... Os parlamentares de hoje fazem tanta questão de resgatar a história da Casa no Arquivo, e se esquecem do principal: HONRAR e DIGNIFICAR as lições ali guardadas revelando-as em ações.
∞ Apesar de saber para quem e de quem falavas, Mestre... Juro que, as vezes, me parece que visualizavas o futuro, e nele narravas o que vias no terceiro milênio, principalmente após o ano de 2003... Enfim...
∞ Prossigamos na aula perene do sublime Mestre.
◊ Entrelaçando a colação do vosso grau com a comemoração jubilar da minha, e dando-me a honra de vos ser eu paraninfo, urdis, desta maneira, no ingresso a carreira que adotastes, um como vínculo sagrado entre a vossa existência intelectual, que se enceta, e a do vosso padrinho em letras, que se acerca do seu termo. Do ocaso de uma surde o arrebol da outra.
◊ Mercê, porém, de circunstânscias inopinadas, com o encerro do meu meio século de trabalho na jurisprudência se ajusta o remate dos meus cinquesta anos de serviços a nação. Já o jurista começava a olhar com os primeiros toques de saudade para o instrumento, que, há dez lustros, lhe vibra entre os dedos, lidando pelo direito, quando a consciência lhe mandou que despisse as modestas armas da sua luta, provadamente inútil, pela grandeza da pátria e suas liberdades, no parlamento.
◊ Essa remoção da metade total de um século de vida laboriosa para o desentulho do tempo não podia consumar sem abalo sensível numa existência repentinamente decepada. Mas a comoção foi salutar; porque o espírito encontrou logo seu equilibrio na convicção de que, afinal, me chegava eu a conhecer a mim mesmo, reconhecendo a escassez de minhas reservas de energia, para acomodar o ambiente da época as minhas idéias de reconciliação da política nacional com o regimen republicano.
◊ Era presunção, era temeridade, era inconsciência insistir na insana pretensão da minha fraqueza. Só um predestinado poderia arrostar empresa tamanha. Desde 1892 me empenhava eu em lutar com esses mares e ventos. Não os venci. Venceram-me eles a mim. Era natural. Deus nos dá sempre mais do que merecemos. Já me não era pouco a graça (pela qual erguia as mãos ao céu) de abrir os olhos a realidade evidente da minha impotência, e poder recolher as velas, navegante desenganado, antes que o naufrágio me arrancasse das mãos a bandeira sagrada.
◊ Tenho o consolo de haver dado a meu país tudo o que me estava ao alcance: a desambição, a pureza, a sinceridade, os excessos de atividade incansável, com que, desde os bancos acadêmicos, o servi, e o tenho servido até hoje.
◊ Por isso me saí da longa odisséia sem créditos de Ulisses. Mas, se o não soube imitar nas artes medrançosas, de político fértil em meios e manhas, em compensação tudo envidei por inculcar ao povo costumes da liberdade e a república as leis do bom governo, que prosperam os Estados, moralizam as sociedades, e honram as nações.
◊ Preguei, demonstrei, honrei a verdade eleitoral, a verdade constitucional, a verdade republicana. Pobres clientes estas, entre nós, sem armas, nem oiro, nem consideração, mal achavam, em uma nacionalidade esmorecida e indiferente, nos títulos rotos do seu direito, com que habilitar o mísero advogado a sustentar-lhes com alma, com dignidade, com dobrançaria, as desprezadas reivindicações. As três verdades não podiam alcançar melhor sentença no tribunal da corrupção política do que o Deus vivo no de Pilatos.
◊ Quem por uma causa destas combateu, abraçado com ela, em vinte e dito anos da sua Via Dolorosa, não se pode ter habituado a maldizer, senão a perdoar, nem a descrer, senão a esperar. Descrer da cegueira humana, sim; mas da Providência, fatal nas suas soluções, bem que (ao parecer) tarda nos seus passos, isso nunca.
◊ Assim que a bênção do paraninfo não traz fel. Não lhe encontrareis no fundo nem rancor, nem azedume, nem despeito. Os maus só lhe inspiram tristeza e piedade. Só o mal é o que o inflama em ódio. Porque o ódio ao mal é amor do bem, e a ira contra o mal, entusiasmo divino. Vede Jesus despejando os vendilhões do templo, ou Jesus provando a esponja amarga no Gólgota. Não são o mesmo Cristo, esse ensanguentado Jesus do Calvário e aqueloutro, o Jesus iroso, o Jesus aarmado, o Jesus do látego inexorável? Não serão um só Jesus, o que morre pelos bons, e o que açoita os maus?
◊ O padre Manuel Bernardes pregava, numa das suas Silvas:
“Bem pode haver ira, sem haver pecado: Irascimini, et nolite peccare. E as vezes poderá haver pecado, se não houver ira: porquanto a paciência, e silêncio, fomenta a negligência dos maus, e tenta a perseverança dos bons. Qui cum causa non irascitur, peccat (diz um padre) patientia enim irrationabilis vitia seminat, negligentiam nutrit, et non solum malos, sed etiam bonos invitat ad malum. Nem o irar-se nestes termos é contra a mansidão: porque esta virtude compreende dous atos: um é reprimir a ira, quando é desordenada; outro excitá-la, quando convém. A ira se compara ao cão, que ao ladrão ladra, ao senhor festeja, ao hóspede nem festeja, nem ladra; e sempre faz o seu ofício. E assim quem se agasta nas ocasiões, e contra as pessoas, que convém agastar-se, bem pode, com tudo isso, ser verdadeiramente manso. Qui igitur (disse o filósofo) ad quae oportet, et quibus oportet, irascitur, laudatur, esse que is mansuetus potest”.
◊ Nem toda ira, pois, é maldade; porque a ira, se, as mais das vezes, rebenta agressiva e daninha, muitas outras, oportuna e necessária, constitui o específico da cura. Ora deriva da tentação infernal, ora de inspiração religiosa. Comumente se acende em sentimentos desumanos e paixões cruéis; mas não raro flameja do amor santo e da verdadeita caridade. Quando um braveja contra o bem, que não entende, ou que o contraria, é ódio iroso, ou ira odienta. Quando verbera o escândalo, a brutalidade, ou o orgulho, não é agrestia rude, mas exaltação virtuosa; não é soberba, que explode, mas indignação que ilumina; não é raiva desaçaimada, mas correção fraterna. Então, não somente não peca o que se irar, mas pecará, não se irando. Cólera será; mas cólera da mansuetude, cólera da justiça, cólera que reflete a de Deus, face também celeste do amor, da misericórdia e da santidade.
◊ Dela esfuzilam centelhas, em que se abrasa, por vezes, o apóstolo, o sacerdote, o pai, o amigo, o orador, o magistrado. Essas faúlhas da substância divina atravessam o púlpito, a cátedra, a tribuna, o rosto, a imprensa, quando se debatem, ante o país, ou o mundo, as grandes causas humanas, as grandes causas sociais, as grandes causas da consciência religiosa. Então a palavra se eletriza, brame, lampeja, atroa, fulmina. Descargas sobre descargas rasgam o ar, incendeiam o horizonte, cruzam em raios o espaço. É a hora das responsabilidades, a hora da conta e do castigo, a hora das apóstrofes, imprecações e anátemas, quando a voz do homem reboa como o canhão, a arena dos combates da eloquência estremece como campo de batalha, e as siderações da verdade, que estala sobre as cabeças dos culpados, revolvem o chão, coberto de vítimas e destroços incruentos, com abalos de terremoto. Ei-la aí a cólera santa! Eis a ira divina!
◊ Quem, senão ela, há de expulsar do templo o renegado, o blasfemo, o profanador, o simoníaco? Quem, senão ela, exterminar da ciência o apedeuta, o plagiario, o charlatão? Quem, senão ela, banir da sociedade o imoral, o corruptor, o libertino? Quem, senão ela, varrer dos serviços do Estado o prevaricador, o concussionário e o ladrão público? Quem, senão ela, precipitar do governo o negocismo, a prostituição política, ou a tirania? Quem, senão ela, arrancar a defesa da pátria a cobardia, a inconfidência ou a traição? Quem, senão ela, ela a cólera do celeste inimigo dos vendilhões e dos hipócritas? A cólera do Verbo da verdade, negado pelo poder da mentira? A cólera da santidade suprema, justiçada pela mais sacrílega das opressões?
◊ Todos os que nos dessedentamos nessa fonte, os que nos saciamos desse pão, os que adoramos esse ideal, nela vamos buscar a chama incorruptível. É dela que, ao espetáculo ímpio do mal tripudiante sobre os reveses do bem, rebenta em labaredas a indignação, golfa a cólera em borbotões das fráguas da consciência, e a palavra sai, rechiando, esbraseando, chispando como o metal candente dos seios da fornalha.
◊ Esse metal nobre, porém, na incandescência da sua ebulição, não deixa escória. Pode crestar os lábios, que atravessa. Poderá inflamar por momentos o irritado coração, de onde jorra. Mas não o degenera, não o macula, não o resseca, não o caleja, não o endurece; e, no fundo, são da urna onde tumultuavam essas procelas e donde borbotam essas erupções, não assenta um rancor, uma inimizade, uma vingança. As reações da luta cessam, e fica, de envolta com o aborrecimento ao mal, o relevamento dos males padecidos.
◊ Nest’alma, tantas vezes ferida e traspassada tantas vezes, nem de agressões, nem de infamações, nem de preterições, nem de ingratidões, nem de perseguições, nem de traições, nem de expatriações perdura o menor rasto, a menos idéia de revindita. Deus me é testemunha de que tudo tenho perdoado. E, quando lhe digo, na oração dominical: “Perdoai-nos, Senhor, as nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores”, julgo não lhe estar mentindo; e a consciência me atesta que, até onde alcance a imperfeição humana, tenho conseguido, e consigo todos os dias, obedecer ao sublime mandamento. Assim me perdoem, também, os a quem tenho agravado, os com quem houver sido injusto, violento, intolerante, maligno, ou descaridoso.
(*) Rui Barbosa de Oliveira, nasceu em Salvador — em 5 de novembro de 1849 — e morreu em Petrópolis — 1º de março de 1923. Foi jurista, político, diplomata, escritor, filólogo, tradutor e orador brasileiro.
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